quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Sessão Fotográfica Dezembro





Em Terra de Ninguém

É curioso como isto funciona...
Entenda-se "isto" como algo quase caído em desuso... escrever.

Escrever, escrevinhar, tirar notas em folhas soltas, apanhadas à pressa numa qualquer mesa de café.

Escrever sempre foi um acto de desespero, de necessidade, de atirar contra uma folha branca a profundidade de pensamentos, sentimentos, de emoções, de experiências sentidas e vividas e que, por um ou outro motivo, não podem ser faladas.
É onde consigo discorrer, pensar e partilhar... ou era onde conseguia. É que, entretanto, a vida ensinou-me, à custa de muito treino, a verbalizar....e a fonte constante de palavras escritas parecia ter secado. Aprendi a comunicar sem medos.

Continua a ser muito curioso.... curioso porque nos últimos anos não tive a mínima necessidade de criar um espaço de partilha ou acrescentar algo a um dos alguns já existentes.

De quando em quando regresso às memórias abertas ao mundo, às muitas memórias que partilhei e que me faziam notar que, passados alguns anos, me espanto com a capacidade e facilidade de escrita e com a capacidade de ainda me emocionar com o que escrevi. Não devido à memória mas porque aquelas palavras escritas por outro autor qualquer com memórias diferentes das minhas, me continuariam a emocionar.
Cada palavra, cada silaba, cada letra se organiza como por magia para despertar dentro de mim sentimentos. Não os da mulher menina que as escreveu noutra vida qualquer. Cada linha, cada palavra, cada sílaba se organiza e, como por feitiço, revelam a intensidade com que foram escritas, revelam a alma por detrás de quem as escreveu e de quem as lê. 

A vida mudou e voltou a mudar. E voltou a mudar. E, de repente, volto a estar num sítio isolado. A encontrar-me num local que não vem em mapa nenhum. Num limbo que me impossibilita de comunicar aos que me rodeiam, à família que escolhi, onde estou, quem estou a ser, o que estou a fazer.
Cada conversa de ocasião arrisca a tornar-se um exercício na arte de desviar conversa. A curiosidade dos demais é constantemente desviada e as perguntas mais directas são respondidas com prontidão e alguma tristeza. Não porque as respostas sejam tristes... mas porque é triste ter aprendido a mentir. E ter aprendido a mentir bem.... não propriamente por vergonha do que estou a fazer mas porque nenhuma das minhas pessoas, à excepção de uma, teria a abertura de espírito, a mente aberta e a compreensão dos factores e acontecimentos que me trouxeram aqui. Nenhuma delas, à excepção de uma, aceitaria sem um enorme alvoroço as razões e a escolha, neste momento, de estar a trabalhar como acompanhante. Provavelmente nunca aceitariam...

A arte de mentir, desviar e ocultar tem sido aprimorada por necessidade. Porque cliente nenhum tem de saber demasiados pormenores sobre a minha vida privada mas principalmente porque ninguém da minha família de criação e quase ninguém da minha família de eleição conseguiria aceitar o que realmente se passa sem fazer um drama de preconceitos e flagelação... e já tenho pessoalmente bastante com que lidar...

Nenhuma das pessoas que conheci nesta profissão tem a aptidão para Ouvir e eu não tenho assim tanta necessidade de falar. Mas tenho a necessidade de partilhar e a necessidade de escrever sobre o que não consigo falar. Sobre o que não consigo dizer, sobre o que não consigo verbalizar.

Os acontecimentos, caras e encontros são tão rápidos que nos obriga a passar à frente rapidamente. Mais uma arte aprimorada. Passar à frente. Preparar, Viver, Passar à frente. Preparar de novo, Viver, Passar à frente.... e quando o dia de trabalho termina, passamos de novo à frente. Temos filhos e casas onde regressar. Temos compras para fazer, banhos para dar, conversas para por em dia, jantar para fazer. Dormir... Passamos à frente com a agilidade de gazelas e não olhamos para trás. Não podemos. Simplesmente não podemos. Ou então sou eu que não posso. Não sei.

O que sei é que a pressão interna vai aumentando. E essa já conheço bem. Já não a sentia à bastante tempo.... a pressão de não fazer uma pausa. A pressão de não poder passar à frente sem ter mastigado, digerido e cuspido de alguma forma. A pressão de demasiados acontecimentos e rostos sem conseguir verbalizar a beleza de muitos deles, a estupidez de outros tantos e a brutalidade de poucos. Brutalidade não no sentido de me sentir violentada ou de brutos. Mas porque são profundos, viscerais e fazem vibrar cada célula de quem estou. Brutalidade porque me destruturaram de alguma forma e me obrigaram a procurar pontos fixos, ombros e estruturas para não perder o equilíbrio e me estatelar desamparadamente. De todas as vezes em que perdi o equilíbrio ao longo destes meses consegui sempre cair de pé...

Mas a pressão não desaparece. E a vontade de escrever também não. A necessidade de concentrar pensamentos e deixa-los fluir de forma mais ou menos organizada. É realmente engraçado a forma como isto funciona. Como tendo ignorado mais uma capacidade, a vida deu meia volta e me volta a colocar num local enevoado onde a única saída é iluminada pela escrita.

Muitas reticências poderiam ser aqui colocadas e este texto terminado à laia de despedida. Mas as reticências servem silêncios, servem pensamentos vazios e momentos cheios. Não servem decisões nem resoluções. Servem momentos em suspenso e este momento não é suspenso. É sustentado num crescendo, num grito que se forma, num gesto adiado.

Pois que também sou escrita, nisto que sou. Pois que também sou verbo, nisto que estou.